De Joaquim Barbosa a Sérgio Moro: a Nova República arde na fogueira das especulações jurídicas

As especulações já começaram. Como em 2012, um magistrado se torna sensação das bolsas de apostas para as eleições vindouras. Associado com o personagem justiceiro Batman, o então presidente do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa emergiu do julgamento do Mensalão como suposto favorito ao pleito presidencial de 2014.

A reeleição da presidenta Dilma Rousseff jogou um balde de água fria nesse prognóstico.

Ao não se concretizar, a profecia deixou seus Nostradamus em maus lençóis. Ao traçar uma linha sucessória direta entre Judiciário e o Executivo, sem as mediações do sistema partidário e eleitorado, esse tipo de previsão se baseou numa simplificação grosseira dos dilemas da Nova República. A ideia de que o Mensalão produziria efeitos eleitorais imediatos (a candidatura vitoriosa de um magistrado, baseada na luta contra a corrupção) se mostrou prematura.

Não obstante, o vaticínio retornou, quase intacto, em vésperas do próximo ciclo presidencial.

As manifestações de 4 de dezembro de 2016 trouxeram de novo à tona a figura de proa de um magistrado – o juiz Sérgio Moro, protagonista da Operação Lava-Jato. No ano do impeachment de Dilma, do furor das especulações emergiu um novo favorito à Presidência. Comentadores que apostam em uma candidatura desse naipe recuperaram figuras notáveis – de Jânio Quadros e sua vassourinha a Fernando Collor, o caçador de marajás – que subiram a rampa do Planalto impulsionados pelo voto popular e pela retórica anticorrupção. Correndo o risco de incorrer no mesmo erro de quatro anos atrás, essa analogia entre os demagogos de outrora e os magistrados-salvadores do presente se baseia apenas na indignação da sociedade civil diante de partidos desmoralizados e deslegitimados por grandes escândalos de corrupção.

Em 2013, o governo federal foi contestado de múltiplas formas nas ruas. Em 15 de novembro, Joaquim Barbosa decretou a prisão dos condenados no Mensalão. O significado dessa data não passou despercebido. A conjunção das maiores manifestações populares desde as Diretas-Já com a intensificação do protagonismo político do STF, porém, não produziu uma reviravolta eleitoral. As urnas reconduziram Dilma ao Planalto em 2014.

Os resultados do pleito de 2014 foram judicialmente contestados pelos perdedores (o PSDB, de Aécio Neves). Mas o que impulsou o impeachment de Rousseff foi o racha entre o PT e o PMDB (partido que controlava simultaneamente a Câmara dos Deputados e o Senado, além de ter o vice-presidente Michel Temer como fiador da governabilidade). Sem a contribuição decisiva dos principais agentes do sistema partidário, o impeachment de 2016 teria tido destino similar a fracassadas tentativas anteriores (como as de 1994 e 1999). O contexto onde a Operação Lava-Jato prosperou é a desagregação da aliança vencedora nas urnas de 2010 a 2014.

A composição improvisada do governo interino Temer mesclou os descontentes de 2014 e de 2015. Entretanto, os resultados desanimadores do novo governo trouxeram desalento à sociedade. E, sem surpresas, previsões salvacionistas foram reanimadas pela Lava-Jato. A figura flamante do juiz Moro surgiu como um novo messias.

Os mesmos elementos que separaram Barbosa do Palácio do Planalto incentivam a Judicialização da Nova República.

Transições políticas no Brasil foram marcadas por disputas simbólicas sobre o lócus da corrupção no corpo político. Desde o Império herdeiro da monarquia Bragança, a luta contra a corrupção serviu como instrumento político para forças sociais descontentes. A corrupção foi mobilizada de diversas maneiras, no calor de cada disputa. O pensamento social brasileiro dedicou boa parte de suas energias para mapear a corrupção (buscando suas raízes na colonização, na suposta ausência de uma tradição liberal, na transição de uma economia agrária para a industrialização, na relação entre sociedade civil e estado, dentre outras possibilidades). Ao redefinir a corrupção de forma bem-sucedida, tais mobilizações políticas permitram a reprodução da pólis (e suas assimetrias) e também silenciaram contestações. Um drama central de 2016 fica mais claro à luz dessa disputa. A luta contra a corrupção nas ruas foi apropriada por um sistema partidário em descrédito. Leis contra a corrupção viraram mecanismos de autoproteção de legisladores.

Na Nova República em crise, luta contra a corrupção assume feições centrais, sob nova roupagem. A inclusão de novas elites e a ampliação da participação política sob Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff forçaram os limites da democracia construída nos escombros da ditadura civil-militar. Após a ditadura, as relações entre sociedade e estado no Brasil foram mediadas pela economia. A tolerância aos limites da governabilidade foi diretamente proporcional ao aumento do poder aquisitivo da população (via políticas públicas como o Fome Zero, o Bolsa-Família, bem como mecanismos de transferência de renda, como o fim do imposto inflacionário). Por outro lado, retrações econômicas estigmatizaram alguns governos como corruptos (caso de Collor).

Após a crise econômica mundial de 2008/2009, o ciclo de crescimento associado com a estabilização da moeda, o overprice das commodities e a realização de megaeventos chegou ao fim, em meio a grandes manifestações da sociedade civil demandando mais democracia. Diante de mais contestação e menos recursos, o sistema partidário se retraiu e a sociedade civil se frustrou. Nesse contexto, o Judiciário se tornou um árbitro político fundamental. Do Mensalão à Lava-Jato, o protagonismo político das cortes aumentou, alimentado pelo desalento da participação políticas nas ruas e nas urnas (o impeachment de Dilma foi o ponto culminante desses processos).

A proeminência do Judiciário foi viabilizada pela crença da sociedade civil em sua suposta neutralidade, diante do sistema político em falência múltipla. Durante sua mais profunda retração econômica, a Nova República se tornou refém da luta contra a corrupção. A Judicialização intensificou mecanismos de supervisão da pólis, mas restringiu a participação popular – dando, paradoxalmente, fôlego extra ao sistema partidário em frangalhos.

Nada garante que as manifestações de 2016 e a Lava-Jato elegerão um magistrado em 2018. Essa profecia subestima o grau de influência que o Judiciário adquiriu ao longo das controvérsias da Nova República. Ademais, esse duvidoso cenário não resolveria as contradições entrelaçadas dos Poderes da República. Seria um sinal de seu aprofundamento.

Até lá, a sociedade brasileira conviverá com a figura tácita de um Poder Moderador de feições imperiais, não-eleito.

diretor de Assuntos Internacionais, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT), em colaboração voluntária ao SRzd

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